Intimamente falando

(Laís Moura)

      Arrastei-me para fora do estacionamento por que o carro que esperava não apareceu (uma das quinhentas mil coisas que planejamos e não dá certo) e num ímpeto de pressa esqueci de uma coisa.
      Parei um instante: olhei para dentro de mim. Aonde tinha deixado? Qual foi o último momento que lembrava de portar aquilo comigo? Olhei para meu sapato. Não havia nada que pudesse fazer com que eu lembrasse. Mas apenas o fato de ter esquecido me deixou constrangida, mais ou menos como a gente se sente quando olha uma paisagem muito bonita e se sente beeeeem miúdo. Sentei na mala de rodinha que carregava, bem ali, do lado de fora mesmo do estacionamento. Cruzei as pernas e sorri para uma moça que passou por mim na rua.
      De repente o meu esquecimento foi mais relevante do que aquilo que esqueci. O que ocupava o espaço fora de mim era um lembrete de que eu existia, e que o sentimento que passava em meu coração era tão real como um pedaço de pedra. Afinal, aquele sentimento era o conjunto do que senti a vida toda, exatamente como a pedra existe devido ao acúmulo de fragmentos que com o tempo endureceu.
      Gelei por uns segundos: fiquei com medo de quebrar-me. Se esqueci já não tinha mais problema: eu poderia levar para frente e seguir andando com apenas o que tinha, ou não podia? Se me traí por esquecimento, com este eu faria de novo, bordaria! Pintaria um quadro, conversava com um estranho e não trocaria contatos. Dançaria descalça, daria risada pegando chuva, abraçaria ao invés de ser abraçada: pois o que esqueci foi a mim mesma. Daqui, recrio-me, e tudo bem: só se termina um livro caso passe para o próximo capítulo.
      Levanto, respiro. Com o ar que entra escrevo assim a primeira palavra.
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