Continuação

(Lais Moura)

O que aconteceu hoje pode ser considerado uma continuação do texto "Perda", visto que ocorreu devido a minha tendência recente de mergulhar em Clarice Lispector.
Terminei ontem "Paixão segundo G.H.". Destinada a remontar minha identidade pensei em alugar "Memórias de uma gueixa" na biblioteca no dia que se sucedesse. 5:20, levanto. Olho o livro em cima da mesa: definitivamente irei pegar "Memórias de uma gueixa". Você sempre quis ler esse livro, lembra?, penso, ainda mais depois que sua mãe lhe proibiu de ver o filme por causa de supostas pornografias. Mãe, a vida é uma pornografia! Quis gritar. Meninas brincam de casinha e meninos brincam de bola para que a pornografia comece!
Ela não iria me entender----------
Chego na escola, abro a bolsa. Encostada no bolso interno está Clarice Lispector sorrindo, tímida. Quer saber? Vou pegar outro livro dela, qualquer um! penso.
16:30. Acabo prova, carrego nos passos a dúvida se fui bem ou não, que logo é assassinada por uma dúvida mais cruel: Clarice? Quando enfim cruzo as pernas e inclino meu corpo para passar pela entrada do muro branco decido: Clarice. Abro a porta que você nunca sabe se vai fechar sozinha ou não e entro naquela imensidão azul. (As lâmpadas são de um tom azulado bipolar: no início você sente uma paz absurda, estou no próprio paraíso! Sempre soube que o paraíso seria uma biblioteca. Quanto mais tempo você passa naquele azul, ao sair, mais tempo você passa no inferno: a luz do dia, antes branca, fica vermelha. Juro que Salvador parece sangrar).
Avisto um homem negro, com os olhos pesados, sentado atrás do balcão. Ele ergue os olhos para mim. Digo ou não digo boa tarde? Penso, é que sou tímida diante de homens. Me escuto falando boa tarde antes de decidir.
- Boa, - Responde com voz de homem. Voz de homem tem cheiro de eucalipto.
Ando mais depressa que o normal para que os olhos daquele ser humano não pousassem por demais em meu corpo e me repreendo. Seja mais segura, penso, olhe nos olhos, sorria, ande devagar, balance o cabelo. Quando chego na frente da bancada com o computador de empréstimo, não vejo uma alma: JESUS, FECHADO! Grito dentro de mim, Mas e Clarice hoje? Morrerá?
Recuo três passos (ai vem o clímax!) e avisto uma senhora absorta em seus pensamos com os olhos em um livro. Soube que era funcionária por estar atrás de outra bancada com outro computador.
- Licença, tem alguém aqui no empréstimo?
Ela suspende a cabeça apressada; seus cabelos grisalhos e castanhos balançaram levemente no pescoço. Deu um sorriso:
- Já vai, meu bem!
Vou para as estantes logo ao lado, onde sei que lá em cima, na primeira estante, está pedaços de Clarice. Qual deles levar?
- Você quer qual?
- Hum? - Pergunto, já entendido mas incapaz de formular qualquer coisa que não um mero "hm?", já que minha prioridade no momento era Clarice.
- Já decidiu, meu amor, o livro?
- Ah, Clarice.
- Não temos muitos dela. - Disse, saindo. Não me dei conta de sua saída até sentir a presença de seu corpo empurrando um banco em minha direção. - Dá uma subida ai, meu bem, para você vê melhor! - E sorri largamente.
Sabe aquelas pessoas neutras que só com a convivência você descobre se morre de amores ou se afunda de ódios por elas? Pois - Aquela mulher não era assim. Você morria de amores - Ou melhor, ela te matava de amores - logo de primeira.
- Sabe o nome do livro dela que você quer?
- Não exatamente. É que já vim lendo alguns.
Peguei o livro, desci do banco com cuidado para não cair. Estava quebrando meu recorde: quase dois anos sem quebrar o pé.
Entrego o livro para ela. Elogios, meu bem, minha querida, flor, sorrisos. Fiquei constrangida: Ela transbordava amor. Quase que perguntei: Você se incomodaria de emprestar um pouquinho de você para a humanidade? ao que ela responderia: Claro, meu bem, como você quiser.
Na minha cabeça, plantei idéias maléficas que estava prestes a executar caso não fosse embora rápido o suficiente: Iria raptá-la. Ela seria minha.
Voltei meus pensamentos para Clarice, e alisei-a com os dedos. O que sua textura iria me ensinar dali para frente...?
- Acho que o computador deu defeito, escreverei na mão mesmo. - Sorrisos.
Jesus, penso, aquela mulher poderia convencer Bush a alimentar porquinhos.
Saio da biblioteca: Inferno. Sangue.
Na minha mão Clarice pulsava.
Acho que esta história não tem final. Acaba assim mesmo.
Fim.

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