Página virada

(Laís Moura)

Há muitos anos distantes deste, num pedacinho de mundo afastado deste e numa realidade diferente desta coexistiam moralistas e... bom, e eu.
As casas eram construídas nas árvores pois se acreditava que quanto mais perto do céu mais perto dos deuses estaríamos, e a parte que eu mais gostava de viver dentre eles era o fato de poder andar descalça, sentir a terra entre meus dedos. Cada um tinha uma função desde cedo, e todos os sábados nos reuníamos e fazíamos nossas devidas oferendas aos deuses. Devido a esta extrema religiosidade cresci como já disse anteriormente num bando moralista, e as pessoas reproduziam na mesma veemência que respeitavam as regras. Apesar disso, as mulheres poderiam tão somente unir-se a alguém quando passassem por uma espécie de ritual, que exigia concentração e força (tudo o que eu menos tinha). Antes disso até havia alguns casos de relacionamento, e quando descobertos, o casal passava por um processo de punição e nunca mais via nenhum deles, o que me soava extremamente hostil e desumano. Mas ainda pior que isso, era que todo filho gerado fora de época era torturado e teria seu futuro desafiado pelos deuses (se não morto pelos próprios pais).
Eu, falando desse jeito negativo, me auto-denuncio como fora de época. Meus pais tentaram me matar só que a tentativa não saiu muito certo, e como consequência desenvolvi asma. Antes que pudessem tentar outra coisa quando eu ainda era um bebê, fui descoberta e então desenharam a estrela de Davi com fogo nas minhas costas, que ao crescer foi parar na coxa.
Faltava apenas uma coisa: descobrir qual era o desafio dos deuses.
Quando atingi os sete anos minha mãe me levou à um oráculo, só que quando vi aquela coisa em decomposição e horripilante desatei a gritar que nem uma maluca e, golpeando minha mãe que tentava me fazer ficar ali, sai correndo e nunca mais atravessei mais do que dez metros daquele local.
 - Você é impossível! - Disse minha mãe. - Nem a morte aguenta você, menina!
 Aquela foi a frase mais dolorosa que já tinha ouvido desde então. A partir dali fui empurrando a certeza com a barriga, na esperança de que vivesse uma vida normal. E digo que consegui, pois fazia o que me era proposto e vivia rodeada de amigos. Nunca fiz questão de parceiro então o ritual nunca foi um problema para mim.
Chegou uma hora meus pais adoeceram, os dois juntos. Estavam a beira da morte numa das milhares de vezes em que ficava ao lado deles, contando histórias ou simplesmente inventando algumas. Quando então dei uma pausa para engolir saliva minha mãe falou olhando o teto:
- Eu consigo vê-los...
- Vê-los, mamãe? Vê-los quem?
Meu pai desatou a chorar.
- Os Deuses...
- Estão levando ela, minha filha.
Tomei um susto quando minha mãe fincou a mão no meu pulso com uma força que eu tinha certeza que ela já não tinha há muito tempo e disse:
- Descobri seu desafio.
Engoli em seco. Não sabia se estava pronta para ouvir, mas apenas olhei para seus olhos fundos, esperando a resposta.
- Viver, minha filha. Ter eu e a seu pai como pais.
- Não fale uma besteira dessas...
Ela me ignorou, suspirou e morreu. Meu pai me olhou, sorriu, suspirou e também morreu. Me deixaram lá, a beira do precipício, e um ódio tão profundo se apossou de mim que eu seria capaz de acelerar o processo de decomposição de seus corpos com minhas próprias mãos. Soquei a parede e fui embora, pois sabia que o ódio era fútil demais para se perder tempo algum com ele.
E então tudo fez MUITO sentido.

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