Ela acreditava em anjos, e por ela acreditar, eles existiam. - Clarice Lispector

(Laís Moura)

Este, mais do que qualquer texto dos quais escrevi, é um relato antigo sobre minha pessoa. Durante anos calei um segredo que foi umas das mais fortes justificativas sobre meu sucesso hoje, e o tempo, bicho indomável, sussurrou que já era hora.
E, por justamente daqui a pouco eu estar indo me juntar aos meus ancestrais que brilham no posterior pôr-do-sol, digito aqui sem maiores escrúpulos.
Eis os fatos.

Toda manhã mergulhava os pés no chão lamacento e andava rápido até sair do território da fazenda que morava, pois o cheiro de pena de galinha me deixava enojada. Como muitos sabem, sofri uma perda precoce da minha mãe, e lá pelos meus 11 anos fui morar no interior com meu pai, seu irmão, meu avó e meu primo mais novo. Atravessava uma fase que, além de me deixar sensível e irritadiça, fez com que virasse uma adolescente estridente e barulhenta. Quando não estava no colégio mal estruturado daquela cidadezinha, me via ao lado de meu melhor amigo do qual idolatrava: Meu cavalo Rex.
Rex era nome de dinossauro, ou até mesmo de cachorro: mas ele só obedecia por esse nome. Inquieta, custei a tentar ser obedecida por outros nomes, mas a provável mudança de identidade fazia-o entrar num frenesi tamanho que só se aquietava quando lhe dava uma maçã e uma banana, nessa ordem. De início, meu avô custou à me deixar andar com ele (visto que o cavalo custara uma fortuna e, por ser imenso e branco, dava um trabalho dos diabos para deixá-lo bem cuidado), mas certo dia ele disse:
- Cês dois fazem um casal que só. Rex só falta pedir tu em casamento.
Desde então era eu e Rex, para lá e para cá. Dois meses depois de ter dito aquilo, virei mocinha. A casa toda ficou num inferno - meu avô brigava comigo de segundo em segundo dizendo que mulher que era mulher não se sujava á toa (tamanha ignorância), meu pai estremecia só de lembrar e meu primo passou a me tratar com malícia. Um dia ele me disse:
- Tu já podes engravidar. Tem noção do que é ser mãe, puta?
Ele estava bêbado quando o disse, mas ainda assim esfreguei um tapa ardido na sua cara de santo. Fiquei de castigo e então rebelei-me mais ainda. Respeitava meu pai com devoção, e deixava claro que assim agia apenas para me defender. Ele logo entendeu, e mais do que eu a ele, ele passou a ter medo de mim.
Juntando um mais um: adolescente sensível e rebelde - virei mente aberta. E assim que criei essa fama, eles começaram a aparecer.

Anjos.
Os via em sonhos desde a doce infância.
Era simples sonhar com eles, por que na maioria das vezes eu é que era um. Brilhava muito, e só faltava atribuir cegueira a qualquer um que passasse pela mesma estrada que eu. Ao acordar, com o corpo queimando de febre, sentia que meus ancestrais mandavam eles para me sussurrarem que tudo ficava bem, e por vezes esquecia minha essência: apenas respirava paz.
Então, mais ou menos um ano depois que passei a viver uma vida bucólica, me deparei com o primeiro. Eu estava, como todo início de estação, analisando as pedras do rio que ficava a poucos metros da minha escola. Meu pai me ensinara que, quantos mais redondas as pedras eram, mais elas tinham se esfregado uma à outra desde lá em cima na nascente até desaguar, e quanto mais frias as estações mais redondas elas ficavam (o vento violentava as águas). Era verão, e as pedras estavam mais redondas do que nunca.
"Tem alguma coisa errada".
Olhei para frente, depois pros lados. Sim, tinha alguma coisa errada, por que quase não ventava no verão e não fazia jus às tais circunferências das pedras. Seria simples se o "Tem alguma coisa errada" fosse dito por mim, e não por alguém. Não que eu tenha necessariamente escutado alguma voz - apenas o farfalhar das plantas, que se reverenciavam assim quando algo celestial passava por elas - mas eu, de alguma forma, tinha escutado isso antes mesmo de chegar a tal conclusão. E então, quando comecei a acreditar que podia ser algo sobrenatural escutei a voz:
- Você me dá um trabalho dos infernos, Ana Júlia.
Ele não brilhava, e tão pouco se vestia com aquelas túnicas. Usava um macacão, mato na boca e botas, e se não apresentasse tanta beleza juraria que era um dos jardineiros.
- Não pedi para ser assim.
- Certamente.
- Para que veio, então?
- Vim cobrar de você, ora essa. Tem noção do quanto me cansa?
- Anjos não se cansam.
- Claro que se cansam. - Disse um outro, sentado do outro lado do rio. - E também sentem fome.
Desde então, andava cercada de dezenas. Não me incomodava o fato de somente eu os ver, pois priorizava mais meus problemas familiares do que o que eu via ou deixava de ver. Um dia, depois de pouquíssimos meses, eles deixaram de vir. Talvez tivessem pena de Rex, que morria de ciúmes e não deixava eu triscar nele enquanto algum anjo estivesse por perto.
Mas eles sempre estavam lá, e essa certeza me fez criar um caráter de tal respeito pelos outros que passei a ser notada. Para além disso, um deles tocou as mãos em meus lábios e passei a ter o dom da oratória.
De lá para os filmes foi um salto. Virei artista. Sai daquela cidade assim que conclui o ensino fundamental.
E vou te dizer mais um segredo: neste mundo estamos rodeados de pessoas como eu. É só você prestar atenção.

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