Cegueira
(Laís Moura)
Me lembro de pouquíssimas coisas depois que atravessei o rio, mas o que mais recordo é a varanda. O assoalho marrom de diferentes tons rangia docemente à medida que eu andava, como se implorasse para eu continuar andando. Na extrema direita havia uma daquelas cadeiras de velhinho, para balançar.
E só.
Só Deus sabe quantas vezes fiquei me balançando ali. Talvez até Ele tenha perdido as contas.
Uma cerca branca cercava essa tal varandinha, e descendo as escadas - também brancas - dava para alguns poucos metros de grama (que constantemente estava coberto por folhas secas que caíam das árvores, dando uma impressão de outono para sempre) que, sempre ao pôr do sol, eu me deitava e fechava os olhos, tendo quase a certeza de que o sol estava beijando meu corpo todo.
Mas eu nunca ficava muito mais que 5 minutos - morria de vergonha de ser surpreendida pelos meus pais.
E, finalmente, havia o rio.
A nascente do rio nunca consegui ver, e ele desaguava também onde minhas vistas não alcançavam. Ele nunca enchia e nunca esvazia, ficava apenas aquela coisa azul, límpida, correndo na mesma santíssima direção, todos os santíssimos dias. Para além dele, havia uma vasta neblina, que se instalou lá justo para me fazer remoer de curiosidade todas as horas que eu ficava com tédio (ou seja, sempre). Meu pai, desde que eu era pequena, me dizia:
- Filha, filha, pior pode sempre ficar! O que tem do outro lado é por vezes hostil.
Como se eu soubesse naquela época o que era hostilidade.
Então eu vivia me balançando, tentando por em movimento a prisão que os fantasmas me forçavam. Fantasmas da mente, claro, porque o sobrenatural é veneno, como dizia minha mãe. Se você se entrega a ele, é um passo para a loucura.
E haviam as visitas. Poucas vezes eram amigos dos meus pais, e na maioria das vezes, era a minha avó. Ela gostava de usar vestidos compridos só para segurá-los com as mãos, e me dizia:
- Se preocupa não, fia, que o amanhã tá pertinho assim ó. Eles (meus pais) vão largar dessas frescuras quando cê for maior idade.
Essa tal maior idade era o que eu mais ouvia dela. E então, na noite anterior aos meus 18 anos, eu dormi tranquila, certa de que tudo seria diferente quando acordasse.
E então, quando dei conta, tava tudo exatamente igual.
E foi justamente por isso que atravessei o rio. Estupidamente não fiz mala, nem sequer uma mochilinha, e mergulhei assim de mãos vazias naquela névoa. Me recordo que a primeira coisa que senti foi uma mistura de quente e frio - não morno, quente e frio. Exatamente nessa ordem. Em seguida, vi grandes construções, espalhadas por tudo quanto é lugar, e pessoas vestidas de roupas escuras andando de cabeça baixa.
E então, quando entendi que tinha percebido e visto tudo, fiquei cega.
Me lembro de pouquíssimas coisas depois que atravessei o rio, mas o que mais recordo é a varanda. O assoalho marrom de diferentes tons rangia docemente à medida que eu andava, como se implorasse para eu continuar andando. Na extrema direita havia uma daquelas cadeiras de velhinho, para balançar.
E só.
Só Deus sabe quantas vezes fiquei me balançando ali. Talvez até Ele tenha perdido as contas.
Uma cerca branca cercava essa tal varandinha, e descendo as escadas - também brancas - dava para alguns poucos metros de grama (que constantemente estava coberto por folhas secas que caíam das árvores, dando uma impressão de outono para sempre) que, sempre ao pôr do sol, eu me deitava e fechava os olhos, tendo quase a certeza de que o sol estava beijando meu corpo todo.
Mas eu nunca ficava muito mais que 5 minutos - morria de vergonha de ser surpreendida pelos meus pais.
E, finalmente, havia o rio.
A nascente do rio nunca consegui ver, e ele desaguava também onde minhas vistas não alcançavam. Ele nunca enchia e nunca esvazia, ficava apenas aquela coisa azul, límpida, correndo na mesma santíssima direção, todos os santíssimos dias. Para além dele, havia uma vasta neblina, que se instalou lá justo para me fazer remoer de curiosidade todas as horas que eu ficava com tédio (ou seja, sempre). Meu pai, desde que eu era pequena, me dizia:
- Filha, filha, pior pode sempre ficar! O que tem do outro lado é por vezes hostil.
Como se eu soubesse naquela época o que era hostilidade.
Então eu vivia me balançando, tentando por em movimento a prisão que os fantasmas me forçavam. Fantasmas da mente, claro, porque o sobrenatural é veneno, como dizia minha mãe. Se você se entrega a ele, é um passo para a loucura.
E haviam as visitas. Poucas vezes eram amigos dos meus pais, e na maioria das vezes, era a minha avó. Ela gostava de usar vestidos compridos só para segurá-los com as mãos, e me dizia:
- Se preocupa não, fia, que o amanhã tá pertinho assim ó. Eles (meus pais) vão largar dessas frescuras quando cê for maior idade.
Essa tal maior idade era o que eu mais ouvia dela. E então, na noite anterior aos meus 18 anos, eu dormi tranquila, certa de que tudo seria diferente quando acordasse.
E então, quando dei conta, tava tudo exatamente igual.
E foi justamente por isso que atravessei o rio. Estupidamente não fiz mala, nem sequer uma mochilinha, e mergulhei assim de mãos vazias naquela névoa. Me recordo que a primeira coisa que senti foi uma mistura de quente e frio - não morno, quente e frio. Exatamente nessa ordem. Em seguida, vi grandes construções, espalhadas por tudo quanto é lugar, e pessoas vestidas de roupas escuras andando de cabeça baixa.
E então, quando entendi que tinha percebido e visto tudo, fiquei cega.
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