Recordações


(Laís Moura)

Eu adorava brincar de esconde esconde. Você, sempre tão veloz e elástico, conseguia se esconder nos lugares mais improváveis de toda a face da Terra. Eu, asmática, me via obrigada a ceder em função do oxigênio - melhor, da falta dele. Por vezes você me emprestava fôlego. Chegava perto e abanava minha cara com entusiasmo, esperando ansiosamente que eu recuperasse minha cor e minha fala.
 No fundo no fundo era só mais uma desculpa para ficar perto de mim.
 Entre nossa infância e amor não proclamados, existia um intermédio - Big-Blue. Big-Blue era o meu cachorro, um Labrador preto, que ganhou esse nome por ser gigante e adorar qualquer coisa que tinha azul no meio. Ganhou a fama de ser um cão adorável e silencioso. Só latia de madrugada quando tinha, de fato, alguma coisa muito errada - Já evitou um incêndio, um assalto e me salvou quando bebê, que estava me engasgando com o próprio vômito durante o sono. Todas as tardes exceto as de domingo, ele ia para a pracinha central e brincava com as crianças do parque (incluindo eu e você) enquanto as mães iam no mercado ou algo do tipo. Treinado, fez seu papel muito bem: nunca nos aconteceu nada.
 Como eu era afetada de ciúmes ao vê-lo entretido com tanta gente! A única criança que eu realmente não me importava era você, que fazia gato sapato do coitado do cachorro e eu nem me importava. Talvez seja por isso que você tenha sido meu único amigo durante toda minha infância e, para Big-Blue, o melhor amigo durante toda a infância. Juntos, nós três crescemos. Big-Blue começava a ir duas, três vezes na semana na praça por estar com idade avançada e só querer dormir; Você, fez novos amigos e montou seu grupo, passando a maior parte dos dias fora; Eu, comecei a trabalhar cedo demais, sempre correndo atrás do que me falavam que iam ser bom para futuro. Lia que nem uma condenada, trabalhava três vezes na semana numa veterinária e me entalei de amigos virtuais.
 Nos afastamos. Lá pelos nossos 13 anos, nossas aventuras se sentiram entediadas e viraram bom dia. Eu não me incomodei com isso e você também não, mas ainda assim, era uma das pessoas que eu mais estimava dentre aquelas que conhecia. Aos 17, a morte de Big-Blue mudou as coisas temporariamente. Eu chorava até não acabar mais, e a vizinhança, movida pelo bom cão que ele havia sido, ajudou meus pais a fazerem um funeral e se mostrou realmente comovida. Enquanto todos estavam a compartilhar suas experiências com Big-Blue envolta do caixão eu estava lá fora, olhando o céu azul. Todos de preto, eu azul. Você se aproximou, calça jeans largada e cabelo desgrenhado, com os olhos tão fundos como o meu. Sorriu o melhor que pôde e me abraçou como se o fizesse todos os dias: pus-me a chorar de novo. Você se distanciou, enxugou minhas lágrimas e ajeitou meu cabelo - e abraçou novamente. Eu já era a tempos convicta de que você tinha o dom de saber fazer da melhor forma e na melhor maneira gestos, eu, o contrário, me dei melhor com as palavras.
 Depois daquilo tudo você manteve contato comigo, até um pouco depois de ter certeza de que eu estava bem. A rotina te engoliu de volta e nos tornamos a mesma coisa de antes. Me mudei de condomínio, cresci, casei, tive filhos. Você nunca se mudou, mas também cresceu, casou e teve filhos. Faz dois anos fiquei viúva, e você largou sua mulher viúva ontem. Fui no funeral - ela estava acabada. Chorei mais por que lembrei do meu marido do que por sua causa, e você há de entender. Já devo estar na segunda garrafa de vinho, mas esse copo enchi para você, em sua homenagem. Aonde estiver, amigo, erga seu copo também: Saúde. Aqui se vai as lembranças e umas poucas lágrimas que mais do que a mim, lhe pertencem.



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