Ponto final

(Laís Moura)

 Esse país já teve seus dias de glória. Atravessei os sete mares e procurei resposta, solução, ou sei lá o quê - mas tudo que vi foi a mesma teoria. Passei a andar com vertigem. Vertigem por ter tido a certeza e, quando ela me foi alcançada, ter repugnado-a: o amor havia deixado de existir. Não o amor em essência, mas sim tudo o mais que poderia reacendê-lo no coração de alguém.
 Lembro-me dos dias em que ele estava por toda a parte. Alimentação das indústrias não era o mais desejado naquela época, e como era de se esperar, a vida bucólica cabia muito bem junto com aquelas histórias de amor. Histórias em que, sacrificar-se e ceder em alguns pontos a favor do outro não era tão incômodo e razão de dor...Eu já era viva naquela época. Peregrinava feliz de cidade a outra, com sede de mais e mais histórias...
 Hoje estou morrendo. E bem sei o motivo!

Não cheguei a nascer. Não usei fraldas nem nada do tipo - passei a existir, simplismente, com rosto de 15 anos. Meu pai é um Deus - nada do qual me orgulhe - e era responsável pelo amor. Não exatamente responsável - ele era o Amor, e por isso, era um dos mais temidos; Não temido de medo, mas temido de respeito. Anda sempre acompanhado, tem uma família enorme - ele considera todos como irmãos - e é loucamente apaixonado pela sua mulher (minha mãe), que é a Contradição.
O mundo dos sentidos (ou emoções) vivia em harmonia relativa, azucrinado vez ou outra pelo Vazio e pelo Medo. Nada que fizesse diferença, não, de forma alguma! Passado alguns bons anos, contra toda lei natural o Vazio teve um filho, sem nome, sem identidade. Foi banido de todo o reinado e passou a vagar pelas ruas, e na Terra foi temido. Assim se começa essa história, quando Vazio passou a desfrutar de tudo do bom e do melhor por essas cidades. Assim o país "cresceu" e veio a primeira guerra mundial, as indústrias e esses blás blás blás todos. Mas antes disso, bem antes disso, meus pais tiveram um filho, também sem nome e sem identidade. Para não serem banidos, baniram o próprio filho, entregando-o ao relento e a tudo mais. Por sorte, caiu na frente de uma casa de família rica, ainda bebê, e foi acolhido com toda a atenção e carinho do mundo.
Foi chamado de Felipe. Cresceu e quando atingiu seus 15 anos, atormentado pelos seu caráter divino no meio de corações tão meramente humanos, suicidou-se. Tinha muito de seu pai no caráter, o que foi responsável pela lotação de pessoas de luto em seu funeral. Assim que sua alma foi despojada de si mesmo, ela formou toscamente um corpo humano e, a partir da idéia de Aristóteles reuniu um pouco dos 4 elementos e me originou, num lugar bem distante de Felipe.
 Eu era Felipe em corpo feminino. Ele não poderia morrer, claro, o amor não morre. Assim como ele, fui abandonada à própria sorte. Esta última foi-me favorável, pois quando percebi que eu existia e de onde eu vinha, pendurada ao meu ombro estava uma bolsa, contendo toda minha documentação.
Lá dizia que meu nome era Laís, e agarrei-me à ele peregrinando feliz dentre as tais histórias de amor que já citei no início. Diferente de Felipe, eu puxara mais à minha mãe. Me achava demasiada contraditória, não só eu, mas todos que estavam à minha volta. Por ter vindo de um pai como o meu, essa contradição por vezes se passava de forma doce e gentil. E então, enquanto o amor ainda existia em algum lugar eu não envelhecia. Por isso precisava frequentemente mudar de cidade em cidade, sempre no Ocidente, para que não estranhassem meu não envelhecimento. O máximo que ficava em cada cidade era dois anos, mas na maior parte das vezes ficava apenas um ano. E assim décadas se passaram, guerras, genocídios, e a cada geração que vinha menos ainda meu pai se fazia presente. E quando percebi, resolvi me olhar no espelho.
 Eu estava envelhecida. Não só eu, mas o próprio Ocidente, que morria decadente e suicida. Lá pelos anos 2000 e alguma coisa, fui comprar não sei o quê e topei com ninguém mais que o Vazio. Ele estava feliz da vida.
 - Ora, mas quem diria. O casal perfeito andou quebrando as regras, não? - Perguntou quando me viu passar, com um ar ameaçador e hostil.
 - Nada há o que você possa fazer para se aproveitar disso. Você, tanto quanto eu, foi banido.
 - Você fala como se se orgulhasse de tal efeito.
- Não me orgulho, mas tão pouco saio procurando algo que me preencha. Nunca fui um Deus, diferente de você.
 Seus olhos inflamaram de ódio e disse:
 - Você vai peregrinar sempre. Vai viver eternamente. Acha isso bom? Ver tudo que se orgulha um dia morrer e sair de uma desta para melhor?
 - Não vou viver para sempre. O amor há de morrer um dia.
 O velho riu de escárneo e disse:
 - Claro que não, menina tola. Todos precisam de amor.
 - A tecnologia e as drogas hão de ser capazes de substituí-lo.
 Ele sorriu e disse o mais sinceramente que pôde:
 - A Terra vai estar sempre em glória, tola. E eu vou sempre me aproveitar disso, quanto você, vai ficar caçando por aí míseras histórias de terceiros para se alimentar. Sanguessuga.
 Fui-me embora triste. Por mais que ele estivesse errado, no fundo, tinha razão. Passaram-se mais algumas décadas, eu envelhecendo cada vez mais, até que chegou esses anos aí de hoje. Jovens, tão cedo, já dizem que não acreditam no amor. A taxa de casamento já caiu em quase 0 na porcentagem, as lojas de noivas faliram e os pacotes de lua de mel se extinguiram. Vejo poucos se unirem e, quando o fazem, é apenas para dividirem travesseiro e pia de banheiro.
É triste o que vejo pouco antes da morte. Mas vou-me feliz, por que nunca desisti de nada que procurei e ainda guardo aquelas lembranças de dias felizes. Dias de glória. Até o fim serei a mesma garotinha de 15 anos, feita de água, ar, fogo e terra, e para a água, ar, fogo e terra voltarei.

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