Vazio

(Laís Moura)

O tempo é um fortasteiro diante da certeza, e por isso eventualmente ela levava rasteiras. Todo mundo levava rasteiras, e ela sempre estava preparada diante de qualquer uma que pudesse vir.
Eu a idolatrava.
Mediante a isto se fez estrela. Não era tão bonita, não tirava notas super altas, mas era brilhante. Tinha todo o tipo de talento possível, e se não tinha, sabia se aproximar com destreza. Era fria, doce, gentil e no ponto certo de crueldade, fazendo qualquer ser vivo (pelo menos) sorrir ao vê-la passar. Nunca nada a abalou durante mais de três dias, ela nunca ficava zangada durante mais de três horas e lia no mínimo três livros por vez. Tinha irmãos e primos problemáticos, suicidadas e viciados, mas no conforto de seus pais exemplares e unidos há muitos anos e perfeitamente sãos, além de tios, avós, bisavós, todos psicólogos e pedagagos.
Assim aprendeu a lidar com a dor, e muito nova nem sentiu necessidade de abracá-la como os mortais sentem. Se havia uma pedra no meio do caminho* ela não analisava o fato - simplismente passava pelo lado. Trabalhava no que mais amava duas vezes por semana e ganhava mais do que algumas pessoas trabalhavam o mês inteiro, e o tempo todo recebia propostas. Vivia correndo de um lado pro outro, tinha bastante melhores amigos e pelo que chegou ao meu focinho apenas dois inimigos.
Um deles era eu.
Eu não armava emboscadas nem fazia fofoca, apenas olhava. Olhava com um ódio mortal, por que ela tinha seus problemas - sempre falava que não era perfeita - e conseguia se aproximar do céu. Seus namorados eram poucos e duradouros, e nunca do colégio.
E foi no último deles que se perdeu.

Percebi que havia algo de muito grave quando no quinto dia seguido ela estava triste, isolada. Quando qualquer um se aproximava ela ignorava e rosnava, como um leão protege seus filhotes. Todo mundo se perguntava que diabos estava acontecendo, e eu, tão sozinho quanto ela, apenas esperei o tempo passar. Eu já estava acostumado - fui isolado minha vida inteira, essa coisa árdua e bifurcada chamada colegial (ou você é estrela ou você é ninguém) mas ela não. E para minha inquietude e profunda paz, susto e certeza, curiosidade e ignorância ela olhou para mim. Pousou os olhos no meu cabelo picotado, castanho e liso, e foi descendo. Usava um casaco com capus roxo que cobria seus olhos, calça jeans colada até os joelhos e um all star velho e rabiscado. Como não desviou os olhos de mim nem tão pouco disse alguma palavra, me levantei e sentei-me em sua mesa sem pedir licença. Ela arregalou os olhos e fingiu naturalidade, fingiu perfeitamente bem. Ninguém sabia o que estava havendo - isso por que perguntei para qualquer pessoa que passasse por mim - e não sabia por que eu acreditava que ela fosse falar justo comigo, seu inimigo número um. E ela, do jeito que sentia as coisas, deveria saber disso.
 - Minha mãe traiu meu pai com o pai do meu namorado. Quer pedir divórcio.
 Fiquei calado.
 - Cheguei a acreditar que a traição não estava tão encrustada assim como todo mundo dizia. Achava que todo mundo estava sendo só pessimista...
 Tirou o capûs para que eu visse seus olhos, olhos vermelhos e inchados.
 - Você foi para o lado negro da força. - Disse.
 - É. - Ela concordou. - Fui.
 E aquilo foi a única coisa que eu disse.  O que me fez nos dias que se seguiram à sentar em sua mesa e ouvir murmurar uma coisa ou outra foi seu inimigo número dois, ou seja, foi meu amor incondicional à ela. De estrela virou meteoro que por sua vez se partiu em mil pedaços. Ficou invisível. Acrediou sua vida inteira ser cisne, mas assim como todos que iam e vinham ela era patinho feio. E assim, percebeu que a pedra do meio do caminho é pesada demais para chutar e larga demais para se atravessar o lado, e quando chegou a esta conclusão, fez-se minha. Minha amiga, minha confidente e meu fracasso.



* Referência ao poema de Carlos Drummond de Andrade

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