Um senhor que se chama Ideia

(Laís Moura)

Seus pulsos estavam amarrados à beira da cama, e ela esfregava os dela com veemência para se libertar mas quanto mais tentava, mais os fantasmas avançavam. Suava frio e gritava com todas as suas forças. Depois de horas sob torturas, os fantasmas ofereceram uma arma à ela. Ela olhou-a desejosa, apenas um gesto e tudo estaria acabado, repousaria num eterno sono profundo. Ela engoliu em seco e pestanejou:
 - Preciso estar solta para usar.
 Foi libertada e segurou a arma dourada com força. Os espíritos rodavam à sua volta, transformando-a num tornado humano, e invejou sua própria ignorância. Sabia desde o princípio que a guerra não era contra humanos, e sim contra a repugnância espiritual que uns faziam questão de ignorar. Não poderia matá-los, nem tão pouco iria vomitar-se a si mesma com um tiro no crânio, e sendo assim deu um tiro no próprio pé, fazendo com que a dor física levasse embora o terror que a rodeava. Como por sorte ganha eles se afastaram, entretando não foram embora. Ela rastejou-se para fora do seu quarto até os trilhos de trem que eram tão velhos que não suportavam nem três andarilhos, e entrou em processo de convulsão nervosa.
 Ela então olhou para mim. Enormes olhos negros vazios de nada. Sorriu, apenas tinha feito como combinamos.
 - Seria bom. - Disse ela. - Sentir o cheiro das rosquinhas que sua mãe faz aos sábados.
 Eu, um homem maltrapilho mas que tinha suas manhas de satisfazê-la, era seu vizinho de casa há nove anos. Ela era uma garotinha esquelética, e toda vez que falava era para não dizer nada. Conversávamos sobre o clima sem nem sabermos o que era quente e frio, e ela conseguia ser tão cheia de si quando não passava de um sopro. Uma otária.
 - Talvez. Boa garota, disse que ia funcinar.
 - Decerto, se isto não me fizesse gemer de dor.
 - É apenas um pé. Arranque-o fora.
 - Não vivo Jogos Mortais.
 - Ah, sim, você vive.
 - Estúpido, me levante aqui.
 Vivíamos uma amizade carinhosa, como se pode notar. Eu, sempre muito ruim com as palavras e mais ainda com os sentimentos humanos, estendi sua mão e a fiz cair novamente.
 - Idiota!
 - Não chame seu irmão de idiota ou vai arder no fogo do inferno. Não é o que me diz?
 Ela olhou para o próprio pé e deixou seu corpo em forma de concha, lançando ganidos de dor.
 - Por que você faz isso comigo?
 - Sou sua essência. Sei do que precisa.
 - Você é meu amigo, só isso. Ninguém consegue entrar na essência de outros.
 - Os cachorros podem.
 - Você se acha com cara de cachorro?
 - Quer que eu seja honesto ou agradável?
 Uma garota se aproximou de nós, trêmula por dentro e forte por fora. Tão otária quanto à primeira.
 - Quer ajuda?
 - Oh, por favor!
E assim os dias se seguiram e as duas juntas. Toda noite, quando os espíritos iam atormentá-la, a nova amiga se dirigia a casa - era para meu infortúnuo a real vizinha dela - e a contava histórias para dormir. Cética, não acreditava em espíritos, e por isso eles a deixavam em paz, assim como os anjos também deixavam-na à deriva. Falava de modo simples e sorria de modo simples, e assim, fez-se melhor amiga da primeira.
E então fui embora, pois pela primeira vez durante nove anos a primeira entendeu quem eu era. Entendeu que eu era um daqueles espíritos que se alegravam com suas desventuras, nada mais. Transformou-me em sopro, em nada, em vazio e principalmente num otário vagante por aí. Tão pesado que agora sou o equivalente a mais de três andarilhos, e por isso nem posso andar sob os trilhos que guardam a sombra do que um dia eu fui. Guardam a sombra que eu um dia servi para alguma coisa.
O próximo pode ser você, não pode? Ah, não me apresentei. Sou assim mesmo, e não consigo mudar isso.
 Me chamo Idéia.
 Encantado.

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