Tudo deveria ser moscas

(Laís Moura)

Ela abriu os olhos. Suas pálpebras estavam bem leves, e sentiu um vulto passar por ela. Não conseguiu definir de onde vinha a luz pálida que cegava seus olhos, e levantou as mãos na altura da vista para poder vê-las. Se sentiu meio vazia. Era algo que não conseguia se apegar, nem com as mãos nem com a mente, e esvaziou-se de si mesma para entender o ambiente que a cercava. Lembrou-se daquela noite fria e constrangedora ao completar 13 anos. Lembrou-se do que jurava ser seu dia anterior.
 - Você está bem? - Perguntou um garoto de cabelos negros e picados, com uma expressão tão preocupada que a fez se sentir confortável.
 - Por que não estaria? - Respondeu ela. - Não tenho fome nem sede e estou deitada num lugar confortável. Ei, o que são esses tubos nas minhas veias?

 Ela abraçou suas asas com força. Nada estava fora do lugar, e sorriu debilmente. Tudo deveria ser sempre assim, tudo deveria ser moscas. Tudo deveria ser espaços.
 Era um hospital, reconheceu. Sofrera um acidente?
 Olhou ao lado e leu o nome de hospital. Não acreditou no que leu, e assim releu quase involuntariamente. O hospital era para maiores de 18 anos, e ela tinha 13. Voltou a olhar suas mãos, e escondeu-as quando viu sua mãe acompanhada do médico entrando no quarto. Estava de esmalte vermelho, e sua mãe a mataria se visse que pegou seu esmalte escondido. O que era estranho, pensou, tinha prometido que não faria de novo. E desde os 11 anos cumpria todas as suas promessas, e não se lembrou por que tinha desobedecido.
 - Mamãe, eu acho que eu esqueci de contar! Sabia que eu achei uma pedra bem laranja, aquele laranja que você gosta, no caminho para casa ontem?
 Sua mãe lacrimejou. O médico não parava de escrever com suas mãos gorduchas num bloco de papel.
 - Mamãe, por que está chorando?
 - Filha, você se lembra quando há muito tempo atrás uma amiga da sua tia sofreu um acidente e esqueceu de tudo que tinha vivido nos últimos 5 anos?
 - Claro. Mas deixe de ser exagerada mamãe, foi ano passado isso!
 O garoto segurou sua mão e ela ficou encabulada. Que ousadia, nunca tinha visto ele e ele apertava sua mão!
 - Mamãe, acho que entendo o que quer dizer. Eu sofri da mesma coisa?
 O médico balançou com a cabeça.
 - Ah mamãe - Disse ela começando a rir - Ficou louquinha?
 Ela fez-se séria e apoiou-se no silêncio. Pegou um pote prateado, tirou as tesouras de dentro, e olhou-se no fundo deste. Suas mãos tremeram ao ver o rosto adulto e a verdade chutou seu estômago, fazendo ela virar seu corpo para o lado e vomitar.
 Era irreversível.
 O garoto do cabelo engraçado arrumou sua franja, e ela afastou-o bruscamente.
 - PARE DE ENCOSTAR EM MIM!
 Era seu namorado desde os 14 anos. Foi embora, e nem ela nem ninguém sabia o que pretendia fazer. Talvez se soubessem tivessem impedido, mas ele nunca conseguiu lidar com problemas. Jogou-se do último andar do seu prédio.
 Fez-se cor bonita no fim de tarde, a brisa doce bagunçando os pelos dos cachorros que caminhavam na rua. Belo era viver assim, inocente e sem futuro. O ruim eram as provas, que acorretavam-na ao mundo e arrancavam suas asas. Ela não conseguia voar e mal pulava. Diagnosticaram-na com depressão, mas ela acreditava que era uma condição negada. Perdeu os dons, perdeu a emancipação.
 Perdeu-se. Tudo deveria ser moscas.

Comentários

Postagens mais visitadas