O outro lado

(Laís Moura)

Eu teria percebido. Teria percebido mesmo, se não mantivesse minha cabeça tão ocupada a pensar sobre se ia acordar cedo ou não para assistir Bob sponja. Até por que, quando se é criança, é um tanto raro parar para pensar o que são exatamente as coisas que se vê de madrugada, no breu total. E quando o sol anuncia sua chegada, limpa sua mente com raios de amnésia, e aquela sensação hostil vai embora tão rápido como vem. O ciclo recomeça dia após dia, e se você não cria nenhuma desculpa lógica e científica para o que vê acabava vendo o resto da sua vida.
Falo de espíritos, logicamente.
Era criança  quando via. Começava eu pensando que era minha mãe fazendo a visita noturna no meu quarto, vendo se está tudo bem, mas ai o rosto se transforma num espírito que deve ter tido uma morte bem feia na cara e que se aproxima até ficar centímetros de distância de mim. Saio eu correndo para o quarto de minha mãe (dessa vez ela mesma) e esta após me abraçar garante que foi só um pesadelo. E dessa garantia fez com que meus olhos cegassem nesse sentido, e depois de alguns anos jamais vi coisa alguma de madrugada. O que de certa forma para mim é lucro, visto que até hoje não sou muito chegada em almas penadas.
Fora uma ou duas coisas que o espiritismo prega, não acredito em nada que se refira ao resto, apenas penso que Deus dá o dom à quem ele bem quiser, e se a pessoa não entende o por que aqui vai entender lá no outro lado. E uma vez que a pessoa tem o dom, a tendência é se aproximar de outras pessoas que também o tem (por instinto) antes mesmo de conhecer profundamente o outro.
Não sei se é regra, mas comigo é assim. E fui me dar conta disso enquanto estava mergulhada num puff de uma festa, com meu salto de 30 centímetros explodindo meus pés de tantas bolhas. (Ainda aprendo a andar nessa coisa direito). E lá, com o som nas alturas, senta um amigo meu que fazia dança comigo - Alex o nome dele, um pouco mais velho - e começa a falar de forma rápida e rouca sobre suas visões.
Almas, visões, pressentimentos: tudo farinha do mesmo saco.
- Chuvas. Vai vir muito mais, Salvador debaixo d'agua. Vimos a limpeza planetária da parte do Rio de Janeiro, ninguém acreditou. Paciência.
Ignorei o "vamos" (não fazia ideia de quem mais estava nessa história) e perguntei:
- Você costuma falar isso para todo mundo?
- Não, só para quem vive ou entende esse tipo de coisa... - E seu olhar vagou pela festa, como se fosse óbvio que eu era uma das duas coisas.
Mas eu não era.
E então lembrei da infância, e os pesadelos foram tão bem justificados depois de anos, como se estivessem visíveis esse tempo todo. E vi que estava rodeada de amigos - falo daqueles melhores - que tem algum tipo de contato forte com o além.
E ouvindo aquele funk todo me perguntei: isso é regra?
- Perdi muitos entes queridos, amigos de verdade... Eles não acreditam.
- Se eram seus amigos de verdade deveriam acreditar.
Ele deu de ombros, e obscurecendo a face falou:
- Provavelmente vai ser essa semana.
- Essa semana o quê?
- Tudo de novo.
E se levantou indo embora, como se o tempo todo estivesse falando consigo mesmo.


Eu ainda estava me recuperando das benditas bolhas enquanto me dirigia à Casa do Comércio para o ensaio geral. Sim, tinha me lascado na prova decisiva, mas para mim o mais importante era estar no ensaio. E sabia que Alex estaria lá.
Ele sempre esteve.
Quando joguei minha mala no camarim e subi no palco iluminado por uma luz amarelada desejei mais do que tudo estar em casa assistindo Bob Sponja. Alex deu um abraço de lado despreocupado (bem que ele tentou ser assim) e me olhando nos olhos falou:
- Não está com vergonha de mim, está?
Sorri, e fingindo melhor do que ele falei:
- Claro que não!
Marcamos os passos sem olharmos um pro outro, e quando íamos entrar no nosso dueto ele recostou na parede, e de forma meio aérea disse:
- Não...
Com uma força desumana me puxou para descer as escadas do palco, e passando pelo camarim atrás das cortinas me fez subir todas as escadas da porta de emergência.
- O que está fazendo? Alex, está machucando meu pulso!
Sem responder, me levou até o último andar, e de lá daquela cobertura avistei o céu bem de perto. Ia obviamente chover.
Ele passou a mão pelos cabelos longos e aflito sentou-se. E assim que o fez, começou a chover. Não tinha passado nem 10 minutos e dava para ver os carros boiando nas ruas, e tremendo de frio soube exatamente o que ele estava fazendo.
Estava salvando minha vida.
Não nos dissemos uma só palavra durante horas, e quando o crepúsculo coloriu o céu a chuva deu uma estiada. Olhei pelo parapeito da cobertura e vi que o primeiro andar todo estava tomado por água, e rezei profundamente para que minha mãe me abraçasse e falasse que era só um pesadelo.

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