Não-humana

(Laís Moura)

A sociedade considerada plausível de organização e regime político sempre teve a parte um grupo de pessoas, pessoas essas que poderiam ser consideradas um ataque e ameaça para o Estado, de acordo com um gene diferente, que ao invés de deixar o indivíduo defeituoso o torna algo muito maior: não-humano. Capazes de perceber a mentira por ande andam, esses não humanos são isolados do convívio da comunidade e designados a viver uma vida remota e dependente, obtendo o necessário para sobreviver das mãos imundas dos corruptos, que com uma má vontade notória são responsáveis pelas necessidades orgânicas. Mas apesar de serem iguais às dos humanos comuns, essas pessoas são consideradas não- humanas. A única ordem que eles tem que seguir para não serem exterminadas é: não se multiplicar.
Mas dois deles não obedeceram. E dessa desobediência, eu vim.

Vivíamos em uma de tenda, que por fora parecia mais uma cabana gigante, mas por dentro era quase uma cidade. Eram ao todo 15 pessoas, que conviviam num ambiente saudável mas tediante. Todo mundo era honesto com todo mundo (visto que ninguém conseguia mentir sem ser notado) e, em volta da tenda, havia apenas uma floresta interminável e um lago gélido. Nevava no inverno de forma rigorosa, e era geralmente nessa época que uma ou duas pessoas se juntavam a nós. Essa comunidade durava muito pouco, pois a idade média de sobrevivência era 35 anos. Conformados com toda essa situação, eles viviam para o Sistema, optando por viver uma vida medíocre e enjaulada em vez de serem mortos.
Durante muito tempo eu também optei por isso.
A idade média que alguém se juntava à nós era no período de 10,11 anos. Toda vez que o governo vinha para qualquer necessidade ou informação me escondiam numa espécie de porão improvisado, e por motivo de segurança eu nunca soube quem era meus pais. Lembrava vagamente quem era minha mãe por ela ter me amamentado, mas com medo de eu dar com a língua nos dentes me privaram dos meus próprios responsáveis e me mantiveram sobre observação, vendo o que o governo tanto temia nisso tudo. Decepcionados nos meus primeiros anos eles nada viram, mas com o tempo eu mostrei. Mostrei que além de ver a mentira, eu convencia quem quizesse quando a mentira estava presente, e esse convencimento poderia gerar uma revolução. Eu nasci ciente disso tudo, sabendo como exatamente tudo funcionava. Eu tinha nascido naquela tenda, e na fase do descobrimento do mundo eu só tinha aquelas pessoas. Aquilo me dava um vazio tão grande que estar sozinha era a mesma coisa que estar com eles, e então eu conheci um brasileiro, que veio lá pelos seus 14 anos quando eu tinha 10. Aprendi sua língua, e após expor tudo que eu sentia para ele o mundo sentiu junto.
Abrimos a revolução.

Talvez seja exagero da minha parte dizer que o mundo sentiu junto, até por que até hoje essa história é desconhecida no que podemos chamar de pessoas comuns, mas exatamente o que eu queria atingir eu atingi.
Ou seja, o governo.
Hoje sinto como se tivesse vivido uma vida toda e não me lembrasse de muita coisa. Jorge, devido à pouca idade que permitia viver, morreu aos seus 41 anos. Fizemos juntos com que o governo temesse ser substituído por uma vida com leis, mas não centralizada, e com isso nossa tenda virou uma cidade completamente reformada, e já tínhamos direito à músicas e ao rádio. Nos comunicávamos com as pessoas, mas no fim das contas ficamos assustados com o tumulto e vivemos juntos mesmo. Hoje, eu tenho 63 anos, e as pessoas que só conseguem viver na verdade estão espalhadas pelo mundo, muitas vezes influenciadas pelo meio. Elas não sabem o que são, mas sentem.
E uma delas pode estar bem do seu lado.

Comentários

Rodrigo Vellame disse…
esse vai ser um dos seus melhores contos!
perfeita e mensagem e me impressiono com seu vocabulário cada vez mais rico!continua assim...vc vai longe!
beijos,
Vellame

Postagens mais visitadas